A Ideia Nasce
No Porto, caminhava muito – uma média de 22 000 passos por dia. Numa noite, ao passar por um cruzamento, vi pelo canto do olho como ali podia nascer uma fotografia: o sol dourado a descer, um elétrico a deslizar nos carris, a luz a refletir-se num telhado e a desenhar sombras compridas na rua. Fiz um plano: voltar no dia seguinte, três horas antes do pôr do sol, encontrar o ponto exato, ver o horário do elétrico e esperar por aquela coincidência precisa.
Plano vs. o Tempo
No dia seguinte o céu estava nublado. Tudo bem, fica para amanhã. Esse “amanhã” teve, entretanto, 40 000 passos e, ao fim do dia, eu já não ia a lado nenhum. Sem problema – fica para depois de amanhã.
A Luz Está Cá, o Elétrico Não
O tempo estava perfeito. Cheguei cedo, baixei-me para que os carris desenhassem linhas de fuga no enquadramento e o sol cortava o pó da cidade. Quarenta e cinco minutos de espera. Segundo o horário, já deviam ter passado dois elétricos, mas os carris continuavam silenciosos. Tinha planeado ir ver o pôr do sol no Jardim do Morro a seguir, o relógio andava e a minha paciência também. Mesmo assim, decidi ficar. Continuei à espera do próximo elétrico, depois do seguinte e do seguinte… Já estava ali em cócaras há quase duas horas, a pensar que voltaria no dia seguinte.
O Momento que Não Estava Planeado
Foi então que uma mulher entrou no enquadramento. Exatamente no ponto onde eu esperava o elétrico. O sol vinha por trás dela, as sombras estendiam-se pelo passeio, a geometria dos carris unia a cena. Como toda esta beleza dura apenas segundos, eu sabia o quão depressa iria desaparecer. Câmara a “acordar”, foco travado, clique! O elétrico nunca apareceu, mas a fotografia nasceu. Afastei-me com uma sensação de calma – tinha conseguido algo que nem sabia que queria. E gostei mesmo desse algo. Uns minutos mais tarde, ouvi finalmente o barulho de um elétrico. Está bem, que seja. A minha fotografia já ia comigo.
O Que Esta Foto Tenta Dizer
Esta é uma história de controlo e acaso. Planeei o elétrico e o reflexo no telhado, mas o que recebi foi a pessoa e a sombra. A cidade move-se ao seu próprio ritmo; nós limitamo-nos a afinar-nos por ele. Os carris guiam o olhar, mas é a luz que escolhe a personagem principal. Neste enquadramento, ritmo e pausa encontram-se: o trânsito flui, uma pessoa pára, um momento ao sol. E fica a pergunta para pensar mais tarde: quanta beleza nos passa ao lado precisamente enquanto esperamos pelo momento perfeito?
Nota Final
Por detrás de cada fotografia há uma parte que é como a porção submersa de um icebergue: planeamento, espera, céu nublado, tentativas falhadas e pequenas desistências. Nada disso aparece no enquadramento. Desta vez, porém, passou o suficiente para o outro lado: ar dourado, sombras compridas e uma paragem inesperada no meio da azáfama do fim de tarde no Porto. E a lembrança de que, por vezes, esse momento “sem elétrico” é exatamente o que uma fotografia precisa – e o fotógrafo também.

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